segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Desentender-se.

Diálogo pseudolírico em ponto de insolidez

Você conhece a Dona Laura?
A Dona Laura?
Aquela que vende melancias durante o pôr do sol.
No verão?
O movimento é maior no inverno.
Mas... Melancias não são típicas do verão?
São típicas de quando você quiser.
Não entendo sua visão.
Você acha que não entende.
Pombas! Eu tenho total consciência sobre meus desentendimentos.
Mas não sobre teus entendimentos.
Quem é você pra mandar em mim?
Eu sou só você.
Eu?
E quem mais poderia ser?
Você.
Eu sou você. Os pronomes se confundem.
Isso ainda vai me enlouquecer.
Tarde demais.
Estou em plena lucidez.
Quanta pretensão, meu eu saturado.
Tudo é um sonho.
Quando você acordar, a realidade já terá acabado.
O que você sabe sobre cedos e tardes?
Nada.
Contudo, ages como se soubesse.
Meu estado de ignorância é despreocupado.
Você não pode ser eu. Não sou ignorante.
E também não és despreocupado.
Em partes.
Não fale sobre seu eu intrínseco sem conhecê-lo.
Cansei.
Eu também.
Então pare.
Quando você quiser.
Pois, eu quero!
Satisfação em liberdade momentânea.
Vou sair.
Te acompanharei.
De maneira alguma! Sob hipótese nenhuma.
Ao me rejeitar, tu acabas rejeitando a si próprio.
O sol já está se pondo.
É uma bela paisagem.
Vou comprar melancias.
Mas não é inverno?
O sol está dentro de mim.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Everything ends.


Desejos de um final

A decisão estava tomada. O ar parecia mais leve ao seu redor, com a simples sensação de poder fazer - talvez, pela primeira vez naquele ano - o que sua razão e coração mandavam. Todos os minúsculos horizontes de seu organismo falho gritavam a mesma palavra: "Faça!", ordenanavam-a, de maneira rápida e instintiva. Seus batimentos aumentaram e o sangue circulava em uma velocidade inimaginável nas suas veias.
Sentou-se na poltrona macia e aconchegante no canto do seu quarto. "O nosso quarto", repetiu consigo mesma. O instante crucial para a sua nova trajetória estava prestes a ser traçado. Era agora; e era para sempre.
As palavras vieram a sua mente, e inundaram a folha com toda a sinceridade que Clarissa era capaz de suportar.


"Tony,
meu bem.
Chegamos à reta final.
Você sabe, mais do que qualquer pessoa existente nesse planeta gigante, que eu não sei dar início às palavras e que meu extremismo é truculento e estraga quaisquer indícios de diplomacia que eu ainda possa abrigar em meu ser. Encaminho-me, involuntariamente, à direção mais dura que eu poderia seguir, típica de minha insensatez feminina.
É o fim, Tony.
Suponho que tu não estejas entendendo o que eu digo. Deves estar lendo essa folha amassada, arqueando as sobrancelhas - como sempre fazes quando estás confuso -, mostrando os resquícios de tua insegurança no olhar, abrindo levemente os lábios, inflando as narinas, como se a atmosfera fosse tornando-se poluída e que tu ansiasse por encontrar o teu refúgio no mundo que inventamos.
Meu doce. Sabia que você é lindo enquanto dorme? Passei a última noite em claro, analisando teus contornos perfeitos. Tu és uma obra-prima, pintada por um artista de toques refinados e sutis. Tu foste moldado pelas mãos de Midas, meu ouro, meu diamante precioso.
Mas... Eu não posso mais.
Lembra quando nos conhecemos, Tony? Eu era só uma adolescente com desejos desenfreados e um coração inativo, que vivia para os estudos e consagrava-se em cada "não" que respondia às pessoas. Enquanto eu estava sentada, mergulhando-me nas palavras de um escritor filósofo qualquer, tu chegaste derramando todo o líquido adocicado de que és feito. Uma coincidência perfeita.
Posso revivenciar cada instante daquele momento, sentindo cada emoção como se fosse hoje e agora. Foi como se o botão para que meu coração funcionasse e se permitisse arriscar, sofrer e se apaixonar tivesse sido pressionado.
Três anos se passaram. Os três melhores anos que eu poderia ter na minha vida. Tu me deste todo o amor que eu nunca imaginei receber. Sempre fora tão fiel, tão companheiro, tão compreensivo, tão... meu.
Se hoje eu convivo com problemas, não foi por falta de felicidade! Foi só o acaso, o destino... Ou talvez tudo já estivesse escrito nas páginas de um livro e fosse exatamente para ser assim.
Te amei pelas tuas qualidades e defeitos. Sempre que ficávamos juntos, eu rezava mentalmente para que o momento não acabasse nunca. Porém, eles sempre se encerravam. O tempo nunca foi justo comigo...
Bem, eu te amo. Negar isso seria duvidar da realidade. Te amei, te amo, e te amarei por todos os instantes que pertencerem a minha eternidade.
Contudo, há um empecilho. Eu sou o empecilho.
Não suportaria, sob qualquer hipótese, lhe ver sofrer por mim. Você vai seguir a sua vida. Tu nunca precisaste de mim para ser bem-sucedido ou arrancar olhares das mulheres ricas e invejadas. Você pode sobreviver.
Mas eu, meu encanto, não posso mais.
Estou dolorida - por dentro e por fora. Meu coração se corrói e minhas lágrimas caem com uma facilidade surpreendente.
Sou perecível. Sou errante, errada, injusta, doente e repleta de falhas.
Não fale nada, não murmure pedidos que eu não posso mais atender. Apenas me ajude, meu amor. Preciso do teu apoio... Entenda minhas fraquezas e só guarde consigo os momentos bons que vivenciamos. O primeiro beijo, as cartas, as noites, o teu pedido de casamento.
Deixe-me ir. Não me esqueça - conserve-me em algum espaço adorável de tua memória.
Ame, Antony. Ame muito. Na hora certa, nós estaremos reunidos novamente.
Levo comigo o teu toque carinhoso e teu perfume hipnotizante.
Que a vida se encarregue de nos unir em toda a sua eternidade.
Eu te amo. Mais do que você pode imaginar. Mais do que eu posso suportar.
Da sua noiva,
Clarissa.

PS: a aliança está guardada na terceira gaveta do nos..seu guarda-roupa."


Quando Antony acabou de ler a carta, suas mãos tremiam e não haviam mais lágrimas para chorar.
Correu até o quarto e encontrou o que imaginava.
Clarissa, sem expressão no rosto, olhos vidrados ao léu, deitada no chão em frente à cama. Sem espírito. Sem alma. Sem vida.
No espelho, os escritos em batom vermelho: "Perdoe-me, Tony".
Ao lado, folhas com diagnósticos de exames.
Tony sempre soube. Havia marcado para hoje a surpresa que faria para a mulher - um jantar especial, regado pela certeza de que ele estaria sempre ao lado dela. Não fora possível.
No peito de Clarissa, uma faca.
Tony pegou sua mão branca e beijou sua bochecha pálida, enquanto entrava em estado de choque e mostrava as rugas crescentes em seu rosto.
"Minha pequena, eu trouxe rosas vermelhas e a sua comida predileta", murmurou em seu ouvido. Clarissa não respondeu.
Acariciou seu cabelo ruivo e encarou seus olhos semi-abertos.
"O que será ser só, quando outro dia amanhecer? Será recomeçar, será ser livre sem querer... Quem vai secar meu pranto? Eu gosto tanto de você." recitou os versos de Chico Buarque que embalaram o romance dos dois.
...Levaram-no ao manicômio.