domingo, 31 de agosto de 2014

Escrevia

Razão de ser
"Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece.
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?"
(LEMINSKI, Paulo)

Escrevo porque preciso, sim, Leminski. Escrevo pra organizar o que não sinto. Escrevo, também, porque minto. Escrevo porque aquilo que dói precisa ser amenizado. Escrevo porque, lá no fundo, aquilo que cala também precisa ser falado. Escrevo pra tirar das entranhas o silêncio que me provoca. Escrevo, sim, porque a lacuna das entrelinhas incomoda.
Escrevo, mesmo que não seja pra ti. Escrevo, ah, sem destinatário, pra mim. Escrevo, deve ser pra ninguém. Escrevo, talvez, só porque o ócio convém. Escrevo, sem admitir que não leio. Escrevo porque não há fim que justifique o nosso meio. Escrevo pelo que guardo aqui. Escrevo por desacreditar do que vi. Escrevo pela tranquilidade que fica. Escrevo pelo Carnaval que vai. Escrevo porque, no fim, tudo expira. Escrevo pra lembrar que a confiança trai.
Escrevo pelo meu desespero. Escrevo pra acalentar meu medo. Escrevo sem rima, sem métrica, sem vida. Escrevo, mas sempre esqueço qual foi o meu ponto de partida. Escrevo pra abraçar a ausência. Escrevo, sempre vítima da minha inocência. Escrevo, de verdade, não sei pra quem. Escrevo  deve ser pra esperar a felicidade que vem.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Lirismo bem comportado que desistiu de ser libertação

Eu sei, embora preferisse não ter conhecimento de causa, que tu depositarás um bilhete na caixa postal e imaginarás a minha reação ao lê-lo. Eu sei que a tua exasperação será tanta que não suportarás admitir o futuro como uma incógnita -- sei, meu bem, que tu me ligarás e repetirás tudo aquilo que escreveste anteriormente. Eu sei que tu me mandarás flores, recitarás sinceros e ridículos versos e comporás melodias com o tom da minha existência. Eu sei que tu me acompanharás aos quatro cantos do mundo e me convidarás para conhecer Marte. Eu sei que dividiremos a cama e tu cederás o cobertor para que eu me aqueça. Eu sei que tu viajarás para outra galáxia e enviarás notícias. Eu sei que tu sentirás ciúme dos meus livros e pedirás, em tom de súplica, que as enciclopédias cedam espaço na estante para os nossos porta-retratos. Eu sei que tu fingirás e elogiarás a minha péssima comida. Eu sei que tu reclamarás das minhas noites em claro e tentarás descobrir o que me aflige. Eu sei que tu criarás artifícios e me convencerás a abandonar o sedentarismo. Eu sei que tu segurarás as minhas mãos, mesmo quando a minha frieza atingir níveis alarmantes. Eu sei que tu compartilharás dos meus ideais e discordarás do meu sectarismo. Eu sei que tu enfatizarás que sou pequena -- ínfima -- e o quanto preciso crescer para deixar marcas mais relevantes no mundo. Eu sei que tu abrirás os meus olhos e farás com que eu queira parar de transitar. Eu sei que tu entenderás -- sem justificar -- o que sou. Eu sei que compreenderei minuciosamente o que és. Eu sei que saberemos pouco. Eu sei que desejaremos muito. Eu sei que seremos nós.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Primeira pessoa

Términos suscitam análises; se a psicologia não responde aos meus questionamentos, recorro a quem anseia pela minha chegada. Conto um segredo: poucos sabem que o sonho da celulose é dissipar a ausência com um arco-íris. Atendo às lamúrias gritantes de quem me abraça, culpando os "velhos tempos" pelo ato: transformo o papel, induzindo que meu corpo traduza os quereres da alma.
Engano-me, sim, quando ordeno ao meu lirismo que exalte sensações que não tenho. Entre posses e fugas, contudo, paro no meio do caminho; eis a pedra. Aproprio-me de Drummond: o entrave é, de fato, maior do que a solução. Meu querer não é intransitivo e precisa - sem complexidade - ser completado. Acabo por supor que exista uma relação inversamente proporcional entre sentir e saber; ter a noção de que a sensação é plena envia o tormento dos argumentos contrários às minhas teses. Escolha ou imposição, sei que não sei e isso me basta para permanecer sentindo. Escrevo sobre a minha bênção: ignorância.
Não respondo às pretensões, negligencio ao que me peço, não adiro às lógicas e repudio a linearidade. Meu maior abuso é ser comedida e transferir a felicidade para os próximos vinte anos. Espero que o futuro dispense vocábulos conectivos e esteja longe o bastante para que as minhas utopias sejam edificadas. O clímax do texto é sempre o perigeu da minha certeza. Evito dizer, porque já me basta pensar.
Presenteio as entrelinhas com as lacunas do raciocínio. A liberdade da prosa se encerra quando decido analisar a pintura: tinta a óleo dificulta a arte... Borrei.

sábado, 11 de agosto de 2012

Eu-lírico, você-lírico

Nossa relação é antítese; talvez eu recorra às hipérboles para detalhar com eficácia os pormenores que contornam os nossos vínculos. À deriva, apoio-me em metáforas. Se as palavras se assemelham a cartas embaralhadas, abraço as interjeições. Ah, somos retângulos que se esqueceram de que a adequação às normas cultas é uma exigência mais do que fundamental. Paralelogramo. Paralelo.
Gosto de pensar nós como nós: pronome como substantivo. Entrelaçados, presos por conveniência ou força maior. Segurando o acaso entre nós. Alimentando a esperança de que, algum dia, o fio rompa, após anos de resistência e ardor, liberando e libertando o presente. Intersecção disfarçada. Entre nós. Nós.
Percebo a existência de um dilema, quase um paradoxo. Se falo em primeira pessoa, pareço falsamente sensível e aberta em demasia. Ao contrário: não me sinto disposta a contrariar o que se vê. Eu sinto, eu doo, eu me doo em quantidades não recomendáveis. É comum. Não sou eu e não parece o que é. É nó.
Abandono o "eu", discurso para ti. Tu. Lerás? Chico Buarque cantava a alguém, Quintana chorava por alguém, eu escrevo para alguém. São seres diferentes e ideias incongruentes na essência. Se te utilizo como você, encaixo-te em uma ordem involuntária de vocês que não te (nos) representa. Por consequência, torna-te mais um. Da Silva. Você da Silva.
Por qual recurso opto? Qual verbo transcreve a ação? Qual pronome suprime meu querer-dizer e incorpora o não-dito também? Ao fim, avalio o te(x)to. Conto as peças do quebra-cabeça e reparo no que não é passível de conserto. Silencio diante das frases. Atrevo-me a aderir a uma perspectiva mais concretista e menos pragmática da vida; let it be, life goes on. A continuidade aponta o surgimento das reticências; insurjo-me. Prefiro o que é definitivo e não permite dúvidas. Sei que gosto do certo, mas tu és o errado.
Diga-me com quem andas e te direi quem és. Diga-me do que gostas e te direi que és o contrário disso. Assim, perturba-me e injeto em ti doces deletérios; lá pelas tantas, dedico minhas cartas e canções sem métrica para que, em troca, receba um sorriso de aprovação. Juntos, formamos dramas e epopeias - esperamos pelo alarme do despertador. Despertando a felicidade para acariciar a tradução.
Par perfeito, tu semeias a discórdia e, com pouca constância, me oferece as respostas. Tua companhia é a melhor definição de presença, da mesma forma que a tua ausência é um ensaio da inércia. Na nossa história, dividimos o protagonismo e nutrimos certezas sobre o futuro.
Estamos atados. Colados. Lado a lado, existência com existência, palavra com palavra. Pensamento com pensamento.
Eu e você. Causa e efeito. Corpo e lirismo. Nó.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Inspiração, sou tua!

Litígio
ou
Carta à Inspiração

Que tal um oi na janela

Só pra provar que você ainda existe?
Cá entre nós
Ando um pouco escondida e triste...

A tua falta desespera
O teu excesso é loucura
Ou as páginas são vazias
Ou sofro de constantes tonturas!

Aqui dentro, o caos assenta
Lá fora, a caneta seca
O recanto gentil de minhas palavras
Já chora com as páginas amarelas.

Não espero uma epifania
Tampouco uma maré de sorte
Quando foi que perdi a bússola
Que me dizia o ponto norte?

Se penso, perco a estrada
Fico longe das exclamações
Se paro, enfrento o congestionamento
Atordoa-me o barulho das interrogações!

Das redações de trinta linhas, sinto medo
Das belas prosas e poemas, não me lembro
Eu, que era requisitada para escrever cartões
Apavoro-me só de pensar em Dezembro!

Não sei se foi excesso de Pessoa
Acho que Lispector embaralhou as tuas ideias
Essa história de liberdade e denominação
Fez com que adiantasses o período de férias!

Tanto carinho lhe dei
Para que docemente amadurecesses
Agora fechas a porta
Como se a mim desconhecesses?

Destrata-me com amargura
Do meu caso pareces tirar sarro
Já dizia Augusto dos Anjos:
O beijo é a véspera do escarro!

Bonita tu apareces
Vestido florido, cabelo arrumado
Depois arranjas um motivo
Pedes o divórcio e está tudo acabado!

Devolva-me os versos
Se há uma pílula, mande-a num postal
Permanecer sem a tua presença
Para a minha essência será fatal!

Até desenvolvi insônia
Consola-me saber que por isso vais pagar!
(Quando chegares, te ofereço meu colo
E uma lírica canção de ninar.)

segunda-feira, 19 de março de 2012

Acting naturally

Condolências à razão

Na infâmia do que é triste
Imersa nos tamanhos relativos
Exprime a falta de coesão
A moldura do quadro
Da foto envelhecida
Paradoxo irredutível
Destrói a antiga novidade
  
Se a mão escreve
A veia salta, pulsa, leva, traz
Retorce verdades
Enquanto me contorço na cadeira
Abafando o ciclo
Para conter as ondas
do Pensamento, instituição nobre
  
Mar, límpido, desperta
Averigua o território
Reconhece o caminho
Abriga e silencia
Emudecido, descobre:
O que outrora fazia sentido
Agora não sente nem perscruta lógica
  
Pela janela, a beira da praia
Vê a verdade 
Mutável
Admite a vulnerabilidade
Tua alma é relicário
Guardião da emoção.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Fábula das vias transversais

dei boa noite à vírgula beijei no rosto o ponto final que rejeitava qualquer possibilidade remota de felicidade no desfecho triste da história inacabada mas no fim do fim do início desisti de qualquer impacto e firmei um pacto que não teve sangue nem outro elemento simbólico mas ainda foi um pacto selado mesmo que tenha sido calado com o mosquito que voava enquanto eu deitada imaginava se insetos pensam ora bolas já haviam me dito que só humanos eram racionais mas talvez deixando de lado o conhecimento daquele bom rapaz e considerando o termo humano como uma característica mais emocional e que é volúvel ao ser e nada intrínseca muito menos perpétua pensei que caso fosse comparado com determinado homo sapiens que poderia ser eu ou a senhora que me entregava o mocaccino em mãos na cantina do colégio de alguma maneira o bichano pequeno e quase imperceptível tivesse mais noção do que fazia e do que sentia e do que por ventura desejava além de naturalmente almejar um presente de sorte vindo do futuro que prolongasse a sua sobrevivência e tive certeza de que aquele mosquito era muito humano mas na verdade eu acreditava que se contasse a história para o filósofo que estudou na frança e que entende muito sobre a vida mas pouco sobre si mesmo o cavalheiro cheio de bons modos e com uma presunção entranhada diria que minha lógica estava errada completamente equivocada e que a minha vindoura tese de doutorado teria que ser baseada e embasada em outra coisa mais palpável porque ele preferia crer que eu era mais inseto do que humana e não o contrário e relutei em contar a novidade e pensei que eu era maluca e que absolutamente ninguém conseguiria compreender a velocidade do meu raciocínio e/ou interpretar minhas afirmações como detentoras de um pingo de veracidade e que todo mundo diria que eu bebi demais sonhei demais falei demais pensei demais dormi demais comi demais escrevi demais julguei demais e fiz tudo em demasia quando eu não havia feito nada a não ser deitar e mirar o teto e pensar em insetos e consciência e racionalidade e conceito humano e debochariam dos frutos do meu pensamento e o colocariam no topo do altar da missa do dia seguinte rezando pela minha alma para que eu voltasse a apresentar uma espécie de qualquer coisa comum mais parecida com tristeza do que normalidade e todo o pragmatismo das coisas me parecia distante depois que eu havia jogado o café no chão da cantina e feito o inseto ir embora do meu quarto à palmadas no ar e oh senhor mosquito você levou embora o que me fazia humana mas me deixou suas asas e nenhum estranhóide sapiens me alcança quando viajo e por surpresa descubro algum fator novo que desafie a ordem e promova um caos benéfico comportamental e uma dicotomia que resulta em antinomia e sobram contradições versões e especulações sobre os efeitos da cafeína e o desenvolvimento de uma nova raça de mosquitos que ao picar humildes e tangíveis moças indefesas transmitem certo veneno que corrói as explicações e só lança perguntas perguntas perguntas e pontos de interrogações na vítima você é um meliante senhor mosquito e eu sou a indefesa donzela do nosso romance do autor amigo do acaso casado com o destino que brigou com o ponto final e não criou um término alegre para a fábula da promissora sociedade falida do mito da exclamação