quinta-feira, 17 de março de 2011

Construção (02)

CONSTRUÇÃO

Capítulo 02

"I wanna build you up brick by brick. I wanna break you down brick by brick. I'm gonna reconstruct brick by brick."

As nuvens permitem que as primeiras gotas de água caiam sobre o chão e se arrastem até os esgotos. Os trovões anunciam um temporal inesperado.
As pessoas começavam a se movimentar rapidamente, em busca de um teto que as abrigue até a chuva passar.
Por fim, as nuvens cobrem as estrelas enquanto Mrs. Parks abre a porta de seu pequeno e desarrumado apartamento no subúrbio da cidade.
A casa é decorada em tons de azul e branco, com paredes cobertas por quadros pintados em momentos de impulsividade. As cortinas se debatem contra a janela.
Jovial e perfeccionista, ela passa os dedos pela estante coberta por uma fina camada de pó.
- Tão desleixada, tão diferente... O que ele fez com você, Jude? O que você fez consigo mesma?
As memórias de algum tempo atrás rompem quaisquer resquícios de raciocínio lógico que ainda pudessem existir. Acaba - como um ato de desistência - atirando-se no sofá branco, pintado por uma mancha de gordura raramente notável à olho nu.


"Jullius pega a pequena mocinha nos braços, acariciando cuidadosamente os fios ruivos e as sardas adoráveis presentes nas bochechas da jovem. O primeiro trovão estremece o céu; a chuva causa ruídos no telhado frágil e gentil.
As mãos miúdas e o leve toque de Mrs. Parks no cabelo bagunçado de Jullius desperta arrepios na sua nuca.
- E se eu fosse loira?
- Ainda seria linda. Linda como ouro... E se eu fosse mais baixo?
- Seria o meu anão predileto. E se eu me chamasse Liz?
- Eu cantaria "Hey Liz" ao invés de "Hey Jude". E se eu fosse careca?
- Eu te faria usar um chapéu! - ela diz, escondendo a risada.
- E se...
- Ei, é a minha vez!
- Pois não, boneca.
- E se eu dissesse que te amo?
- Eu não responderia mais pelos meus atos."

terça-feira, 1 de março de 2011

Construção (01)



CONSTRUÇÃO

Capítulo 1

- O que eu estou fazendo aqui mesmo?
A colher de plástico quebra dentro do copo de café, enquanto remexe com bruscos movimentos recorrentes os resíduos açucarados do fundo. As luzes da cafeteria se apagam, enquanto o velho senhor de bigodes dita mais uma indireta para mandar a antiga cliente embora.
A cafeteria fecha as portas, mas a iluminação da calçada acende as caminhadas dos transeuntes - cada pequeno pedaço de matéria envelhecida repleta de promessas e desacasos. As cortinas se fecham nos lares desprovidos de solidão.
O banquinho da praça, tão velho e empoeirado - antes amarelo, agora marrom. Aleatoriamente, algumas folhas voam com a adorável leveza do vento.
- Tudo bem, Seu Manuel. Eu já estava indo embora.
Eternamente presa em contar os ladrilhos soltos da calçada, se mantém firme em seus pensamentos. Resmungando sobre o esquecimento de um casaco, treme de frio e acaricia seus próprios braços. As unhas rosas e o batom vermelho davam destaque aos ligeiros passos da loira criatura viajante entre mares de cegueira e procrastinação.
- Baby, você não quer se esquentar, não?
Uma voz rouca aproxima-se do pescoço delicado e branco. Os lábios ferozes tocam o redor das orelhas com furos desordenados. Petulante, embriagado e mesquinho: uma voz conhecida, que abriga a identidade ainda presente na memória da jovem. O mesmo toque macio e aveludado, e o cheiro de vodka esvaecendo-se no suor.
- Bêbado novamente, Julius?
- Minha sobriedade nunca foi infringida pelo álcool, docinho.
A provocação de sempre. A vontade de pegá-lo nos braços, jogá-lo contra a parede e fazê-lo engolir cada uma daquelas palavras sujas e impulsivas deixa a respiração de Mrs. Parks cortante. "Nojento, é isso que você é", pensa.
- Eu estou tentando reconstruir... Eu, a minha vida, tudo. Por que você não me deixa em paz?
- Construção? Eu sou o seu cimento, minha gatinha. Colo os seus pedaços e te completo, desde que você foi abençoada com a minha existência.
Asqueroso. Ainda detinha a mesma coragem de criar metáforas com alusões à seu favor. Ela o empurra para o lado - com a pequena força que ainda lhe resta - e avança com um desejo certeiro de seguir em frente.
- Não precisa ser hoje, deusa. O ciclo vai se repetir. Vou martelar na sua consciência até você parar de ser prisioneira da mente e optar pela prática, mel.
Mrs. Parks observa as estrelas e tropeça nas elevações da calçada. Algum estrondo repentino enche seus ouvidos de uma agonia perturbadora.
- Céus, enviem-me um casaco agora?