terça-feira, 1 de março de 2011

Construção (01)



CONSTRUÇÃO

Capítulo 1

- O que eu estou fazendo aqui mesmo?
A colher de plástico quebra dentro do copo de café, enquanto remexe com bruscos movimentos recorrentes os resíduos açucarados do fundo. As luzes da cafeteria se apagam, enquanto o velho senhor de bigodes dita mais uma indireta para mandar a antiga cliente embora.
A cafeteria fecha as portas, mas a iluminação da calçada acende as caminhadas dos transeuntes - cada pequeno pedaço de matéria envelhecida repleta de promessas e desacasos. As cortinas se fecham nos lares desprovidos de solidão.
O banquinho da praça, tão velho e empoeirado - antes amarelo, agora marrom. Aleatoriamente, algumas folhas voam com a adorável leveza do vento.
- Tudo bem, Seu Manuel. Eu já estava indo embora.
Eternamente presa em contar os ladrilhos soltos da calçada, se mantém firme em seus pensamentos. Resmungando sobre o esquecimento de um casaco, treme de frio e acaricia seus próprios braços. As unhas rosas e o batom vermelho davam destaque aos ligeiros passos da loira criatura viajante entre mares de cegueira e procrastinação.
- Baby, você não quer se esquentar, não?
Uma voz rouca aproxima-se do pescoço delicado e branco. Os lábios ferozes tocam o redor das orelhas com furos desordenados. Petulante, embriagado e mesquinho: uma voz conhecida, que abriga a identidade ainda presente na memória da jovem. O mesmo toque macio e aveludado, e o cheiro de vodka esvaecendo-se no suor.
- Bêbado novamente, Julius?
- Minha sobriedade nunca foi infringida pelo álcool, docinho.
A provocação de sempre. A vontade de pegá-lo nos braços, jogá-lo contra a parede e fazê-lo engolir cada uma daquelas palavras sujas e impulsivas deixa a respiração de Mrs. Parks cortante. "Nojento, é isso que você é", pensa.
- Eu estou tentando reconstruir... Eu, a minha vida, tudo. Por que você não me deixa em paz?
- Construção? Eu sou o seu cimento, minha gatinha. Colo os seus pedaços e te completo, desde que você foi abençoada com a minha existência.
Asqueroso. Ainda detinha a mesma coragem de criar metáforas com alusões à seu favor. Ela o empurra para o lado - com a pequena força que ainda lhe resta - e avança com um desejo certeiro de seguir em frente.
- Não precisa ser hoje, deusa. O ciclo vai se repetir. Vou martelar na sua consciência até você parar de ser prisioneira da mente e optar pela prática, mel.
Mrs. Parks observa as estrelas e tropeça nas elevações da calçada. Algum estrondo repentino enche seus ouvidos de uma agonia perturbadora.
- Céus, enviem-me um casaco agora?

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